Jornalismo Científico
Mulheres que pesquisam: como elas fortalecem a ciência
Em um campo liderado por homens, pesquisadoras protagonizam a produção de conhecimento científico
Por Pollyane Martiniano – Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas

Ao longo da história, descobertas científicas realizadas por mulheres foram intencionalmente apagadas ou creditadas a homens, fomentando um padrão de invisibilidade feminina. Em 1944, Otto Hahn ganhou o Prêmio Nobel de Química, enquanto Lise Meitner, física austríaca que contribuiu para a descoberta da fissão nuclear e desempenhou um papel-chave na interpretação dos resultados experimentais, foi esquecida pela premiação.
Responsável por capturar a “Fotografia 51”, que permitiu desvendar a estrutura helicoidal da molécula de DNA, a química britânica Rosalind Franklin sofreu a mesma invalidação do seu trabalho. Em 1962, James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins utilizaram os dados de Franklin sem creditá-la e receberam o Prêmio Nobel. A cientista só foi associada à descoberta anos depois, após movimentos de revisão histórica.
Outras mulheres se destacaram por suas descobertas: Hedy Lamarr e o sistema de espectro expandido, que posteriormente usaria a técnica de “salto de frequência” para a criação da tecnologia sem fio; a matemática britânica Ada Lovelace e a concepção do algoritmo com o uso da Máquina Analítica de Charles Babbage; e Grace Hopper, almirante da Marinha dos Estados Unidos, com a invenção do primeiro compilador, que traduz linguagens de programação de alto nível em código de máquina. Além da genialidade em uma época com limitações tecnológicas, elas compartilham o fato de terem suas contribuições para a ciência omitidas por muitas décadas.
Esse cenário ainda é constante nas dinâmicas acadêmicas e de pesquisa. A discriminação de gênero, a sub-representação em cargos de liderança e a dificuldade em acessar os mesmos recursos e oportunidades que seus colegas homens estão presentes no cotidiano das cientistas. Por isso, é crucial ressaltar a atuação de mulheres pesquisadoras que possuem o compromisso de valorizar a produção científica.
Patrícia Medeiros e a etnobotânica

Patrícia Medeiros é doutora em biodiversidade e já venceu dois prêmios pelos seus trabalhos. (Foto: arquivo pessoal).
Com graduação em Ciências Biológicas, com ênfase na modalidade ambiental, e mestrado e doutorado em biodiversidade concluídos na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Patrícia Medeiros atua na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) como professora de Agroecologia desde 2015. Na primeira formação, a bióloga já realizava estudos sobre plantas. Atualmente, Patrícia se destaca nas áreas de etnobotânica, ecologia humana e etnoecologia.
Recentemente, ela foi listada como uma das pesquisadoras mais citadas do mundo na atualização da Science-Wide Author Databases of Standardized Citation Indicators, publicada pela editora Elsevier. Além da bióloga, seis docentes da UFAL foram contemplados, sendo Patrícia a única mulher. “É uma conquista muito significativa”, enfatiza a cientista, “mas precisamos ter mais mulheres em destaque”.
Em 2019, a bióloga foi co-autora de um artigo sobre as mulheres na etnobotânica. Com o propósito de examinar a representatividade feminina nas publicações etnobiológicas no Brasil, e conectar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em suas trajetórias científicas com o viés de gênero na área, o trabalho “The role of women in Brazilian ethnobiology: challenges and perspectives” é bastante representativo. “A Taline da Silva, que é a autora principal desse artigo, estuda comigo desde a graduação. Conto com ela como uma das minhas parcerias na área científica”, destaca Patrícia.
Ela também explica que a presença feminina nas ciências biológicas é consistente, em contraste às áreas de exatas, que contam com espaços mais ocupados por homens. Com um levantamento de 28 anos de publicações acadêmicas no Brasil na etnobiologia, Patrícia Medeiros, Taline da Silva, Natalia Hanazaki, Viviane Fonseca-Kruel, Juliane Hora e Stephanie Medeiros evidenciaram que há uma diferença mínima na publicação de trabalhos entre homens e mulheres na etnobotânica, apesar de existir mais artigos publicados por pesquisadores do que pesquisadoras. “Em escalas gerais, nosso resultado foi positivo. As mulheres não estão totalmente invisibilizadas nessa área, mas observamos que os artigos em que homens são os autores principais possuem uma tendência de serem publicados em revistas de maior relevância”.
Além de citar o panorama sobre as mulheres na etnobiologia, ela compartilhou suas experiências pessoais. A pesquisadora é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, uma titulação concedida aos cientistas brasileiros que se destacam por sua produção científica e importância na área de atuação, no entanto, as diferenças de tratamento por gênero ainda estão presentes no seu cotidiano. Patrícia diz que já vivenciou uma situação em que foi chamada de última hora para compor uma banca, “só para não ficar mal ter apenas homens”, ela lembra. “As cientistas mulheres devem participar ativamente da organização de eventos científicos, para que a nossa contribuição seja valorizada”.
Com uma presença mais recorrente em ciências biológicas e saúde, 7.608.642 profissionais da área científica são mulheres, é o que indica a Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad) realizada em 2023. Já os homens totalizam 5.365.989 cientistas. No entanto, mesmo com uma participação mais expressiva na ciência brasileira, apenas 45% dos bolsistas no país são de pesquisadoras, segundo dados do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
A bióloga também é uma das coordenadoras do Laboratório de Ecologia, Conservação e Evolução Biocultural (LECEB) e integra o corpo docente de dois Programas de Pós-Graduação: Etnobiologia e Conservação da Natureza na UFRPE e Diversidade Biológica e Conservação nos Trópicos na UFAL.
Para chegar nessa posição de prestígio na sua carreira, ela lembra do início de tudo e fala com carinho e admiração sobre a mãe, que criou não uma, mas duas filhas cientistas: Patrícia e Priscila. Apesar de seguirem caminhos diferentes nas áreas de atuação – Priscila é doutora em Comunicação e formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – as irmãs gêmeas se tornaram pesquisadoras com o apoio da mãe. “Minha mãe é uma grande inspiração, ela sempre se dedicou para que eu e minha irmã pudéssemos seguir nosso sonho na área científica. Ela era professora e cantora, então foi difícil em alguns momentos, mas ela sempre esteve presente”, detalha.
Patrícia também fala sobre as bolsas de pesquisa, que muitas vezes podem ser um fator que desestimula quem deseja seguir na área acadêmica. “Eu estudava em uma universidade e fazia estágio em outra, não podia ter bolsa. Então ter o apoio da minha mãe foi muito importante para que eu pudesse me tornar uma cientista. Talvez hoje eu seguisse uma carreira diferente se não fosse por ela”.
Um relatório da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) mostra que, entre 2012 e 2021, o investimento em ciência e tecnologia foi reduzido de R$ 11,5 bilhões para R$ 1,8 bilhão por ano. Esses dados refletem diretamente na queda de produção científica: uma pesquisa da editora Elsevier e da Agência Bori destaca que o Brasil publicou 69.656 artigos em 2023, um contraste considerável diante dos 74.570 trabalhos em circulação no ano de 2022.
Hoje, Patrícia Medeiros é vencedora de dois prêmios: o L’Oréal-UNESCO-ABC Para Mulheres na Ciência de 2019 e o Internacional Rising Talents da L’Oréal-UNESCO for Women in Science de 2020 por suas pesquisas com plantas alimentícias não convencionais (PANC). No artigo “Local knowledge as a tool for prospecting wild food plants: experiences in northeastern Brazil”, com foco no assentamento Dom Hélder Câmara, em Alagoas, a bióloga e outros autores exploram o uso do conhecimento local na identificação e popularização de plantas alimentícias selvagens com potencial de consumo e comercialização.
“No nosso estudo percebemos que não há um padrão de conhecimento associado a fatores como idade ou gênero. Isso sugere que ações de popularização e comercialização dessas plantas não devem focar em um grupo específico, mas sim abranger a comunidade como um todo. Essas informações são importantes para que as políticas públicas respeitem as dinâmicas sociais das comunidades locais”, ressalta Patrícia.
O trabalho que ela vem fazendo contribui para o conhecimento local na promoção de plantas alimentícias não convencionais e oferece uma abordagem prática para identificar e avaliar espécies promissoras, pensando na criação de estratégias de segurança alimentar, preservação do conhecimento tradicional e desenvolvimento econômico sustentável.
Em 2024, Patrícia iniciou o pós-doutorado na Alemanha, se dedicando aos estudos da biodiversidade das plantas alimentícias selvagens (WFPs), algo essencial em tempos de crise climática. No artigo “From forest to table: The role of product naming in consumer expectations of biodiversity-derived foods”, a cientista e os autores analisam o potencial dessas plantas para a segurança alimentar global. Essa pesquisa impacta diretamente no uso sustentável de recursos naturais, visando a conservação de espécies e ecossistemas.
Patrícia Medeiros reforça o que é necessário para ter mais mulheres protagonizando estudos científicos. “Precisamos de investimentos principalmente nas áreas em que os homens ocupam mais espaço na ciência: na matemática, na computação, nas exatas no geral. A quantidade de mulheres nesses espaços ainda é mínima, tem muito preconceito, os desafios são diversos”.
Ela finaliza com uma mensagem de incentivo. “Eu sempre fui apaixonada pela ciência, muito curiosa sobre as coisas ao meu redor. Falaria para as meninas que desejam ser cientistas: participem de projetos, estejam cercadas de mulheres que te inspiram!”.
Kamilla Abely e o protagonismo feminino

Kamilla Abely integra ‘a Geni’, grupo de pesquisa voltado para os estudos de gênero. (Foto: arquivo pessoal).
Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e formada em Jornalismo pela UFAL, Kamilla Abely pensa na sua produção científica como um modo de exaltar as mulheres. “Meu trabalho de conclusão de curso (TCC) foi uma reportagem multimídia de título “Corpo, voz e protagonismo feminino: representatividade, vivências e desafios de mulheres no jornalismo alternativo em Alagoas” e agora minha dissertação, atualmente em desenvolvimento através do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFS), aborda o jornalismo especializado feminino em Alagoas, através da análise do Portal Eufêmea”.
Com o interesse pela mídia alternativa despertado no início da graduação, Kamilla estudou as iniciativas da região que surgiram após a Greve dos Jornalistas em 2019. Durante a pesquisa, ela notou que a maioria dos veículos de comunicação alagoanos eram liderados por mulheres. “No TCC, foi muito significativo para mim poder entrevistar mulheres jornalistas nordestinas, engajadas nesse tipo de jornalismo voltado para o lado social. Foi essencial para compreender e trazer à tona as vivências, representatividades, desafios, conquistas e impactos que me são comuns e atravessam tantas outras mulheres em atuação”, enfatiza a mestranda.
No seu projeto de mestrado, o Portal Eufêmea se tornou o corpus da sua pesquisa, pois é o único veículo jornalístico do estado especializado no público feminino, priorizando histórias sobre mulheres. Kamilla destaca que o seu objetivo é contribuir para o campo do jornalismo local, trazendo como discussão central a perspectiva de gênero. Ela também integra o Núcleo de Estudos em Gênero e Interseccionalidades na Comunicação na UFS, carinhosamente chamado de Geni.
“Quando falamos de Geni, a tratamos no feminino e ela nasce na UFS com a ideia de estudar gênero sob a perspectiva da interseccionalidade. O núcleo parte do marcador de gênero, buscando a todo momento desessencializar o pensamento de gênero enquanto um medidor social universal homogêneo, desprovido de atravessadores e tensionadores externos”, ressalta Kamilla.
A Geni é coordenada pela pesquisadora Dra. Renata Malta, docente da UFS, e composto por mestrandas, doutoras e docentes também na área de comunicação. Mas o conhecimento produzido no grupo não se limita aos muros da universidade, a pesquisa perpassa o meio acadêmico. O podcast “Histórias da Geni” será lançado em breve e Kamilla pretende contribuir em um episódio com o material que levantou na sua dissertação. Esse passo é importante para que o debate sobre gênero alcance meninas e mulheres em qualquer lugar do mundo.
O trabalho de Kamilla Abely e das pesquisadoras da Geni estão inseridos em uma etapa significativa na produção científica. O estudo “Gênero em números” de autoria de Fabrício Marques, e publicado na Revista Pesquisa FAPESP, aponta que em 2018 os artigos sobre mulheres e gêneros atingiram um total de 3.684 publicações, enquanto no início nos anos 2000 foi realizada a contagem de apenas 243 artigos.

Kamilla tem quatro irmãs e sempre as incentivou a se dedicarem aos estudos. (Foto: arquivo pessoal).
Mesmo com esse indicador positivo sobre o avanço dos estudos de gênero, estimulando a diversidade de temas em produções científicas, a estrutura social ainda beneficia homens nas áreas profissionais. Incentivar jovens garotas a buscar autonomia nas ciências, sejam elas exatas, biológicas ou humanas, necessita de investimentos em projetos empenhados em ter mulheres como protagonistas.
Para a integrante da Geni, isso começa desde cedo. “Olhando para a educação básica, é preciso identificar e fomentar talentos de estudantes nas ciências diversas e, numa feira de profissões, por exemplo, a carreira de cientista e pesquisadora pode ser uma escolha possível! Além disso, é necessário olhar para o quadro da ciência no país e como ainda precisamos promover melhorias na valorização dessas pesquisadoras, levando em conta a interseccionalidade”, explica Kamilla.
Ela também cita como um desafio as ofertas de bolsas de pesquisa e a isenção de direitos trabalhistas mínimos para os cientistas no Brasil. Nesse contexto, as mulheres enfrentam uma vulnerabilidade maior para construir e consolidar suas carreiras, visto que o trabalho invisível no ambiente doméstico e a sobrecarga de múltiplas jornadas (não apenas relacionadas à maternidade, mas também ao cuidado de pessoas idosas, entre outros) tornam-se obstáculos adicionais para que mulheres se tornem cientistas.
Apesar disso, Kamilla Abely está comprometida com a sua jornada na pesquisa e com objetivo de fazer com que esse trabalho tenha um impacto positivo. Ela cresceu com quatro irmãs, duas já estão na faculdade e a segunda mais nova conseguiu uma oportunidade de intercâmbio após Kamilla matricular a irmã em um curso gratuito de inglês. “Eu já sonhava com ela viajando para fora do país, me empolgava muito e dizia para ela ficar de olho e se inscrever assim que saísse o edital, não deu outra: ela se inscreveu, fez a prova e foi uma das selecionadas. Foi uma felicidade para a família inteira! Para as que estão na faculdade, Alice e Mabel, eu sempre incentivo a demonstrarem interesse e participarem de projetos de extensão, monitoria e pesquisa, sobretudo, para experimentarem os três pilares da universidade pública que são necessários demais e nos potencializa”, diz Kamilla.
